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Foto do escritorLuciana Padovez Cualheta

Ei audição, por que você quer me abandonar?

Um breve relato de quando eu descobri que estava ficando surda




Minha avó tem 87 anos e é completamente apaixonada por livros. Acho que eles foram a forma que ela encontrou de se manter viva, de se manter informada, de se manter sã em um mundo em que ela não ouvia. Ela ficou surda muito jovem, (ninguém sabe ao certo com que idade) e, desde que eu me entendo por gente, me lembro de vê-la lendo tudo que encontrava pela frente. Dizem que a surdez pula uma geração. Desde criança eu tive medo que ela me encontrasse.


Eu sou professora. Preciso ouvir bem para me conectar com meus alunos. Preciso ouvir para conseguir falar. E no finalzinho de 2018 eu percebi que minha audição estava querendo me deixar. É uma daquelas coisas que não faz sentido negar. No começo eu quis achar que era impressão minha, que era coisa da minha cabeça, mas acredite em mim: quando você para de ouvir, você sabe. Fiz os exames e descobri a “surdez neurossensorial bilateral leve”. Sabe o que fiz? Nada. Meu médico me disse que era muito leve para usar aparelho, que provavelmente aquela surdez iria piorar, dado meu histórico genético (minha avó está longe de ser a única surda da família) e que tudo que eu podia fazer era esperar.


Segui vivendo minha vida, agindo como se a surdez fosse se curar sozinha e como se eu não soubesse que ela estava ali. Em janeiro do ano seguinte eu ministrei um dos cursos que mais amo na vida, o curso que me deu a certeza de que queria ser professora. Essa turma tinha cerca de 40 alunos, que conversavam alto e animadamente entre um exercício e outro. E eu passei a ir dar aulas chorando. Chorava porque sabia que alguém iria me fazer uma pergunta que eu não conseguiria ouvir para responder. Em uma sala pequena, com pouca gente, isso não acontecia, mas a sala era grande, muitos sentavam-se no fundo e havia ruído demais. Dar aulas passou a doer. Passou a ser um encontro com tudo que eu poderia perder. Eu passei a duvidar da minha capacidade de fazer o que mais amava na vida.


Em maio eu refiz os exames. Ela havia me abandonado um pouco mais. Minha audição está me deixando aos poucos, sem me explicar por que e sem me dizer para onde vai. Quando eu paro para pensar, acho um absurdo perder uma coisa que é tão minha. Eu sempre ouvi. Como alguém ousa me dizer que eu não vou ouvir mais? E aí percebo que a vida é isso. Perder um pouco todo dia e ganhar um tanto mais.


Segui enfrentando o estado de negação por mais seis meses, até que agora, um ano após meu primeiro exame, me consultei com outro médico que realmente sabe o que está fazendo (obrigada irmã, por me obrigar a ir). Sim, houve mais uma queda na capacidade de ouvir. Sim, preciso usar aparelho. Não, não dá para saber se vai continuar piorando e até onde vai chegar.


Eu não sou uma pessoa ignorante. Não sou uma pessoa desinformada. Não sou preconceituosa. E, por algum motivo, eu passei um ano negando uma deficiência perfeitamente normal, por medo de assumir que ela fosse verdade e por vergonha de usar aparelhos auditivos. Mas isso acaba agora. Escrevo esse texto para me curar.

Obrigada audição, por tudo que você me deu. Por tudo que me permitiu ouvir, viver e sentir. Por ter ficado até aqui. Obrigada por tudo que você está me ensinando ao partir. Eu não sei o quanto você precisa ir. Eu não sei o quanto você pretende ficar. Mas prometo dar o melhor de mim para me adaptar a uma vida de “surdez bilateral leve”. Não se preocupe. Eu vou ficar bem.

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